#05 Tudo a um passo de não ter sido nunca
Julho de 2024 - no Rio de Janeiro, mas também qualquer mês de 2022 e 2023 em São Paulo ou Salvador.
Sobre o quê?: coisas que não se definem, Vertigem, Desejo, querer escrever, não escrever, Paloma Vidal, Hilda Hilst, gato e barata.
Respondedor da vez: Flávia Castro, amiga, mulher, mãe e outros adjetivos ainda inexistentes, formada em engenharia, hoje leitora voraz, crítica literária que escreve, e uma das idealizadoras do Literapistas.
“Este livro é fruto dessa imaginação, amorosa porque diz respeito ao que no fim das contas não se poderá saber, mas que, pela força mesma da indagação, mobiliza o desejo quando este se encontra à beira da paralisia”.
Não escrever [com Roland Barthes], Paloma Vidal.
É de muito antes essa sensação, mas é de agora a percepção de que ela existe. É mais ainda de agora a vontade de que ela tenha um nome, mesmo sabendo que nomeá-la pode ser matá-la de vez. Ou finalmente capturá-la.
Por enquanto a chamo de Vertigem. Nada original, eu sei. Mas por mais que seja algo que só eu sinto, tenho certeza de que não sou apenas eu que sinto. Chamo de Vertigem (assim mesmo como um nome próprio) porque se trata também (se trata de muitas outras coisas as quais não sei descrever, quiçá nominar) de uma sensação de paralisia precedida de uma quase queda. Não que seja uma sensação, pois se trata de algo mais sólido e palpável que a fluidez e escalabilidade de uma sensação, mas por ora é uma sensação apelidada de Vertigem.
Vertigem porque ocorre rápido me causando uma euforia vertiginosa (impetuosa, velocíssima). Sensação porque eu sinto e depois não sei mais explicar o que senti, e explicar uma sensação é um exercício tão inútil quanto querer que um gelo sobreviva ao asfalto quente.
O que sei é que a Ela vem sempre acompanhada de um desejo que não tem nome. Um desejo que nunca dorme e que se alimenta apenas dele mesmo. Um desejo de criar. Talvez eu devesse chamá-la de Desejo?
Os nomes fazem falta, infelizmente. Mas tudo o que hoje tem um nome um dia não teve. Desconfio que só na Vertigem, só diante dela, eu seria capaz de voltar para onde os nomes não importam. Mas para isso eu precisaria que ela durasse o tempo suficiente de um labirinto sem fim. Para isso eu precisaria ultrapassar a linha fantasma entre eu e ela.
Voltar para onde os nomes não importam
“A literatura, qualquer literatura (...) é sem provas: não só porque são uma escrita de si, porque ela não ‘pode provar’ o que diz, mas porque não pode sequer provar se vale a pena dizê-lo. Ainda assim, sem provas, ela se experimenta.”
Não escrever [com Roland Barthes], Paloma Vidal.
Lendo sobre a vertigem da escritora Paloma Vidal ao se deparar com o não escrever do Roland Barthes sinto a Vertigem chegando ao me perceber não escrevendo junto ao não escrever da Paloma junto ao não escrever do Barthes. Todo dia sem escrever é menos um dia marcado no calendário. Todo dia escrevendo é um dia a mais.
Demorei para me autoqualificar como escritora. Um rótulo do meu desejo possível. A primeira vez assumida foi no cartório quando dava entrada no meu casamento. Ao preencher os dados, meu então futuro – hoje ex – marido, me desafiou a colocar escritora no campo da profissão. Devolvi o desafio, só se você colocar sociólogo. Assim fizemos: nos rotulamos. Eu, caloura de letras, ele, estudante de sociologia, ambos na segunda graduação querendo finalmente atender ao Desejo de ser.
Na aba escritora existiam inúmeras variações, escolhi escritora de ficção, não para me rotular ainda mais dentro do rótulo, mas porque acredito que a ficção esteja em tudo – tudo mesmo – na verdade, na mentira, na memória, no fato, na realidade, essa última, por sinal, a melhor história que já inventamos até hoje.
Qual o objetivo de tentar fazer existir o que não existe? Qual a lógica deste Desejo de criar? Sei que falar sobre isso é ao mesmo tempo clichê e original – clichê porque muitos já tentaram (aqui não se aplica o verbo conseguir, porque não é algo que deva se conseguir, tentar é conseguir), original porque eu nunca tentei.
A segunda vez em que me senti escritora foi quando tive meu primeiro – e único livro publicado. Hoje, três anos depois, começo a perder um pouco dessa certeza. E estando há quatro anos escrevendo um romance que até agora só existe em mim, começo a duvidar de todos os rótulos. Ser escritora é minha própria ficção.
Ser escritora é minha própria ficção
E olha as tuas mãos agora manchando de preto o branco do papel, mas você pensa seriamente que alguém vai se interessar por tudo isso? Você pensa que adianta alguma coisa dizer que quando você fala da terra, não é do teu jardim que você fala mas dessa terra que está dentro de todos, que quando você fala de um rosto você não está falando do teu rosto mas do rosto de cada um de nós, do rosto que foi estilhaçado e que se dispersou em mil fragmentos, do rosto que você procura agora recompor. Você pensa que falar sobre tudo isso adianta alguma coisa?
Fluxo-floema, Hilda Hilst
Não é nada original usar a palavra Vertigem para descrever a sensação que eu ainda não me atrevi a tentar descrever enquanto tento. Quem me deu essa palavra de presente foi uma amiga, mulher, mãe e outros adjetivos ainda inexistentes (acessá-la é se jogar num rio revolto [rio de Oxum Opará] com a certeza de que a correnteza irá desembocar em alguma praia calma, ainda que a milhares de quilômetros dali).
Foi em um dia de trajeto longo e trânsito intenso, em São Paulo. Me conta sua história, eu pedi quando percebi que demoraríamos mais de quarenta minutos para chegar ao nosso destino. Ela disse que não tinha uma história interessante, insisti, uma, duas, várias vezes, até que ela me contou (e aqui trago apenas o desfecho) que depois de nove anos trabalhando na mesma empresa, ela simplesmente soube que não iria mais trabalhar lá. Nem lá, nem em outra empresa. E isso não aconteceu só por causa da maternidade como muita gente pensa, eu simplesmente entendi que eu precisava parar tudo o que eu estava fazendo. Pergunto como foi essa epifania e ela me diz que sentiu uma grande vertigem – ela simplesmente soube. Com o passar dos fatos a coisa foi se delineando, ela conta que um tempo depois deste movimento inesperado, a leitura e a escrita apareceram na sua vida com ares de que já estavam lá há muito tempo. Desde então, nunca mais foram embora.
Já senti isso, inúmeras vezes, uma ordem vinda de todos os lados de dentro e de fora, me dizendo em um idioma que não falo que é preciso que eu pare tudo o que estou fazendo para escrever. Não qualquer coisa, não de qualquer jeito, mas Escrever (comandos sempre em letras maiúsculas). E escrever não é só escrever. É e não é. E o que acontece quando Isso acontece não é inspiração, nem epifania, nem vertigem. Mas talvez seja Vertigem.
O carro nos levou até o escritório de outra amiga, onde elas, junto a uma terceira amiga, me entrevistaram. A conversa era sobre ler e escrever, assim mesmo, no seu mais amplo aspecto. Nesse dia já saí da conversa sentindo fisicamente o que falar de literatura provoca no meu corpo, o mesmo que livrarias e eventos literários, algo que anuncia uma Vertigem que vem, mas não se fixa. Um quase espirro que se anuncia, mas que some bem na hora em que você ergue a cabeça para encará-lo de frente.
No dia seguinte a essa conversa, num curso de escrita que fizemos juntas, a professora comentou que o Lobo Antunes disse existir uma guerra civil dentro dele, e eu pensei nas guerras civis dentro de cada um de nós, dezenas, milhares, milhões, bilhões, ões e ões de guerras civis únicas, alguns cientes do combate, outros civis de si mesmo, muitos ditadores que ainda não se deram conta de que foram derrubados, e tantos que pediram trégua e há anos se escondem nas trincheiras. Depois falou de Guimarães Rosa e de Deus, e eu queria muito me lembrar do que foi dito, mas só me lembro dela surgindo – Ela, a que ainda não tinha nome e continua sem ter, mas que por causa da conversa abaixo, entre eu e a mesma amiga que estava no carro, passou a se chamar Vertigem.
Eu: Estou com náuseas desde ontem. Só queria te dizer isso.
Ela: Elabora melhor para ver se coincide com a minha (vertigem).
Eu: Vertigem! Isso. É a Vertigem! Vou tentar, tô tentando.
Ela: Essa conversa da aula de hoje me deu angústia no último. Porque é justo isso que sofro e sinto. Isso que queria ter te explicado ontem. Mais um exemplo de que tenho a ideia e não as palavras. Agora, que coincidência este assunto hoje. Não consigo aceitar.
Eu: Não aceita. Só recebe. Eu quero sair correndo daqui e ficar gritando na rua. Também não soube nem te explicar, nem dizer que entendo. Acho que entender estragaria tudo.
Ela: Eu tento. No presente do indicativo. Há bastante tempo. A mão da Clarice, de que eu falava ontem, é o daimon. Loucura que ela tenha queimado a mão, né.
Eu: Ou o contrário da loucura. A decisão que se toma. Eu achava, ainda acho, prepotente da minha parte dizer que tenho essa guerra dentro de mim.
Ela: Não é prepotente coisa nenhuma. Por que seria? Todo mundo tem em maior ou menor escala. A minha pergunta é: seria esse daimon o alter ego do tempo ele mesmo?
Eu: Pode ser uma das facetas, não teria resolução, se não ele se esgota. Eu queria aprender a ouvir melhor.
Ela: Todos nós. Mas as perguntas são seres barulhentos. As musas do tempo são os daimons que incitam e seduzem as pessoas deste mundo. A gente escreve o tempo, mas nunca acerta, mesmo quando acha que acerta uma coisa grandiosa mesmo assim não é o tempo, Rita. Mas são dele estes daimons. Alguns eus são minhocas de daimons dragões. Outros são o contrário. Eus também podem ser dragões de muitas cabeças. O que é explosivo é quando. Eu não sei quando é.
Essa conversa indecifrável define muita coisa, ao mesmo tempo em que denuncia a impossibilidade de qualquer definição. Ainda assim, a última fala dessa minha amiga resumiu tudo o que eu não consigo falar, nem ela. Resumir o não falar é o máximo da nossa capacidade de descrever o indescritível dentro do tempo. “O que é explosivo é quando. Eu não sei quando é.” – diz tudo enquanto não consegue dizer nada.
A conversa não teve fim. Ainda hoje, quando nos encontramos, o assunto volta. No fundo eu sei que o fim dessa conversa é o fim de tudo, que a Vertigem é necessariamente algo que vive num eterno se definindo, ou num eterno estar sendo. Que Vertigem não é sequer um nome, mas um apelido, desses que se dá na infância e espera-se perder na vida adulta.
Desde então, meu dragão de muitas cabeças continua lutando dentro de mim numa guerra civil entre o que eu acho que quero dizer para o mundo versus o que o mundo quer dizer para mim versus o que eu entendo do que o mundo diz versus o que eu acabo dizendo.
As perguntas são seres barulhentos
“Começo a sair de mim mesmo. É doloroso sair de si mesmo, vem uma piedade enorme do teu corpo, uma piedade sem lágrimas” Fluxo-floema, Hilda Hilst
Sonhei com números e acordei com os números dez e vinte e oito rondando a minha cabeça, e só agora me dei conta de que a soma dos números é a minha idade. Trinta e oito anos, quase nove, da minha guerra civil na qual lutam a prepotência de achar que tenho algo a dizer e a inocência de achar que tenho algo a dizer. Todos temos algo a dizer e nada a dizer ao mesmo tempo.
[Estratégia: dizer mesmo sem saber se prepotente ou inocente, de preferência sem mira, de preferência sem a intenção de acertar ninguém, ainda que eu acerte somente a mim mesma num nocaute que me coloque de pé]
Você está viciada na confusão, me disse outra amiga, num dia de clima típico paulistano, um pouco antes de decidirmos que tomaríamos chuva ao invés de gastar dinheiro com transporte. E quando foi diferente?, pensei. Voltando para casa, já sozinha, me perguntei se a chuva molha mais quando estamos parados ou em movimento.
Até que no caminho de casa lá estava ela, a Vertigem. Foram trinta minutos de caminhada na chuva, na qual eu parava de toldo em marquise com o caderno aberto tentando capturar o tudo que o Nada me dizia. Eu estava deslocada do eixo, me via de fora de mim, sabendo que era eu que me via. Eu era eu e era outro, e parar para escrever era minha forma de tentar descrever o que o Nada provocava em mim. Mas eu não consegui [nem daquela vez e provavelmente nem neste texto].
Em casa, seca, ainda nauseada (não, não é a náusea de Sartre, disso já me certifiquei. Mas talvez também seja), me lembrei que precisava lidar com algumas burocracias, já que clonaram meu CPF e me registraram como alguém do sexo masculino. Liguei para um número zero oitocentos e assim que atenderam, caí em mim mesma e matei qualquer resquício Dela. Tentei recuperá-la, mas já não era capaz. Não havia nenhum sinal da Vertigem.
Desde esse dia que eu estou sem senti-la. Mas antes disso houve um intervalo ainda maior, um entre atos, onde senti apenas a dor de estômago causada pela gastrite.
Acontece que os intervalos têm sido longos, sim, o problema são os entreatos, quando passo a enxergar o mundo de forma uniformemente admitida. Eu não preciso da Vertigem para escrever, mas eu preciso. Continuo escrevendo sem que ela apareça, mas quando ela vem sinto que estou chegando perto daquilo que eu realmente deveria dizer.
O problema são os entreatos
“Fale do homem cósmico, dos, das. Mas se eu ainda não sei das minhas vísceras, se ainda não sei dos mistérios do meu próprio tubo, como é que eu vou falar dos ares de lá? Verdade é que eu intuo os ares de lá. Mas é justo falar do de cima se o debaixo nem sabe onde colocar os pés?”
Fluxo-floema, Hilda Hilst
Ano passado pedi para uma amiga que faz joias um colar com o que seria a minha palavra deste ano – a palavra Ato. Sou supersticiosa, mística, religiosa e um tanto quanto ritualística. Também posso ser controladora e cética, principalmente nos entreatos. E nada mais próximo de Deus do que um cético em momentos de fé. Me lembro do bilhete pregado no mural do escritório do meu pai. Um mural enorme com maquetes coladas, colagens, recortes das suas milhares de revistas e jornais e um bilhete, escrito à mão, que dizia: Hoje, mesmo não acreditando nessas baboseiras religiosas, peço a Deus que nos ajude.
Voltando ao colar do Ato. No ano anterior, pedi para a mesma pessoa me fazer um com a palavra Potência. Foi um ano potente, porém a potência me adoece. Na potência eu quase me destruí. Foram cinco amigdalites, uma intoxicação alimentar exorcizante, tendinites, duas paixões, mais de dez estadias, quatro Estados, um estado de depressão, morar numa ilha, sair da ilha para ver a ilha, três ou quatros ebôs, morar na primeira capital do Brasil, mais de quinze voos, carnavais que não contei, insônias que não contei, falta de vitamina B12, falta de ferro, muito trabalho, uma demissão, um cansaço imune a qualquer descanso.
Mas nada dela. Nada da Vertigem.
Minha potência se resumiu a me lançar feroz sem perguntar sobre o norte ou o sul. Fazer do nordeste minha mira cega. Até que caí exausta como se terminasse de construir um império sobre um terreno pantanoso.
O problema foi achar que eu poderia, tão logo começava a juntar meus destroços, ir direto ao ato. Não. Era preciso aceitar o entreato que consistia em não criar. Em aceitar a Vertigem aparecendo cada vez mais rara, cada vem mais rala, apenas em pequenos momentos de um quase gozo que não se concretiza. Sim. O quase orgasmo, o ponto do clitóris onde o prazer se torna torturante porque se mantém sem nunca levar ao gozo em si (pergunto-me quanto tempo é possível sustentar um quase gozo).
Guardei o colar do Ato. O da Potência perdi numa trilha na Chapada Diamantina, não sei se para Oxum ou Oxóssi.
Na potência eu quase me destruí
A Bahia vai fazer bem para a sua escrita. Quem me disse isso foi um amigo baiano, jornalista e cronista que conheci em Lisboa quando fui estudar Literatura Comparada. Eu não sabia nada de literatura, muito menos tinha aptidão e repertório suficientes para comparar o que é que fosse. Eu simplesmente gostava de ler. Recém-saída de uma graduação em publicidade, talvez eu me achasse especial por ser das poucas da turma que lia, e durante as aulas. Não à toa me colocaram de oradora, mas ainda assim escrevi um discurso muito mais publicitário do que literário.
Cheguei em Lisboa querendo me gabar de ter lido praticamente todos os livros do Saramago. E já na primeira aula, o professor e coordenador do curso, referência em Literatura Comparada na Europa, se lamentou de tantas pessoas achando que a literatura portuguesa é só Saramago. Em seguida, ele deu uma aula de três horas e meia sobre Eça de Queiroz e Baudelaire - em francês. Eu não falava francês, nem eu nem um simpático indiano que depois desse dia sempre se sentava ao meu lado. Talvez por isso eu tenha feito francês quatro anos depois, quando tentei limpar meu nome acadêmico num curso de Letras.
[o trauma nos move como um braço invisível, o orgulho também, andam juntos]
Um dia uma pessoa me perguntou por que eu gosto tanto de Saramago. Eu não soube responder. Hoje eu sei que foi por causa da Vertigem. Saramago me dava Vertigem.
Dez anos depois eu reencontrei esse mesmo amigo em Salvador e contei para ele que em Lisboa eu era uma menina apavorada no meio de tantos intelectuais literatos que falavam de um jeito que eu tinha vontade de sublinhá-los para depois reler e entender. Contei também como ele, também um intelectual literato, era meu refúgio, por ser tudo o que me assustava de um jeito que não me assustava. Esse amigo é dessas pessoas de fácil convívio, que pede uma cerveja, toca um violão e fala de futebol, amor e filosofia na mesma tonalidade séria, mas cotidiana.
Em Salvador, vira e mexe ele me visitava em casa para um café e papo rápido. Dizia que eu era o seu refúgio. Eu, o refúgio do meu refúgio. O roteiro da conversa era parecido: nos atualizávamos sobre o cotidiano que nunca é banal, mesmo quando é. Eu na minha então animada vida de solteira, ora apaixonada ora alvo de paixão, o entretinha com casos inusitados e triviais como no dia em quase morri atacada por uma mensagem motivacional (meu quadro com os dizeres ‘algo maravilloso esta ocuriendo’ caiu na minha cabeça e sem saber se o corte no meu pescoço era fatal acordei todos os vizinhos). Por essas e outras, ele sempre dizia que minha vida é extremamente literária. Já ele, me contava do seu casamento, das crises, dos filhos e que ele e a mulher estavam primeiro estudando sobre relacionamento aberto, depois que iriam se separar, até que ele me contou que haviam decidido ter um terceiro filho. Acho que eu nunca o disse como sua vida também é extremamente literária.
O motivo de eu trazer tudo isso à tona é que morar dois anos na Bahia não me trouxe a Vertigem, mas acredito que tenha me preparado para A que virá e me permitirá pular de vez para dentro. A Bahia me trouxe a fé, a festa, o movimento constante, o outro – isso, a Bahia me trouxe o outro, bem quando eu achava que ser eu se resumia a ser apenas eu.
Uma vida extremamente literária
“Por motivos pessoais, por motivos políticos, por motivos difíceis de entender ou de xexplicar, se torna impossível continuar a escrever”
Não escrever [com Roland Barthes], Paloma Vidal
Minha vida era extremamente literária e por isso eu não escrevia nada. A Bahia não me deu régua e compasso, muito menos palco, me deu a plateia e o aviso não avisado de que a vida se vive na rua e no encontro. Ainda que meu relato se dê na casa e na solidão.
Dizem que o ser humano tem tendência a completar o que é incompleto. Era isso que eu buscava quando depois de umas férias resolvi ficar na Bahia e o que seria um mês se tornou dois anos. Eu buscava algum tipo de completude. Hoje eu sei, ou ao menos desconfio, que a completude não existe, é por isso que nós a buscamos tanto. A completude é ela própria uma ficção. A vida é um passo atrás de outro passo correndo para ver se alcança o passo seguinte, mas sem nunca se desvencilhar daquele passo que vem logo atrás.
Talvez essa seja a definição mais próxima para o que eu chamo de Vertigem: tudo a um passo de não ter sido nunca.
A completude é ela própria uma ficção
Seis meses depois de chegar em Lisboa, o Saramago morreu. No dia 19 de junho eu estava num ônibus e passei em frente ao seu funeral. Não desci. Eu não soube muito bem o porquê de não querer descer. Apenas segui até meu destino final que era o Cais de Sodré, onde eu pegaria um trem para passar o dia na praia de Cascais. Penso que eu não queria ter em mim uma imagem do Saramago morto – não ele, uma das minhas primeiras Vertigens. Lembro de ler As intermitências da Morte com vinte e um ou dois anos e me deslumbrar com o fato de alguém ser capaz, como ele foi, de nos fazer gostar da morte: Ela, o destino final de todos nós.
Hoje eu sei que destino final é um pleonasmo, e que dar nome para as coisas é uma âncora que jogamos ao fundo para que a deriva não nos leve tão rapidamente ao fim – esse não lugar onde, diferente do que muitos pensam, para mim é o lugar onde as respostas não existem, e por isso podemos finalmente descansar em paz.
Sessão entrevista ou essa minha mania de fazer perguntas
Respondedor da vez: Flávia Castro, amiga, mulher, mãe e outros adjetivos ainda inexistentes, formada em engenharia, hoje leitora voraz, crítica literária que escreve, e uma das idealizadoras do Literapistas.
Uma pergunta clichê: O que significa uma palavra? Várias tentativas.
Uma pergunta meio absurda: Devemos tentar descrever o que não se descreve? O quê um gato vê numa barata?1
Uma pergunta sobre uma palavra: Existe uma palavra que seja, para você, uma não-palavra? Todas.
Uma pergunta sem resposta certa: Tem como parar de querer escrever? Tem como parar o querer?
Faça uma pergunta para minha afirmação: Eu continuo assim mesmo. A escolha é sua?
De presente, esse comentário maravilhoso da Flávia Castro:
«Todo escritor é meio gato de ideias-barata. Não sei dizer se por instinto ou porque são barulhentas. No sítio da minha avó tinha um monte. Verão, calor úmido da praia, a novela clareando a sala e o pipocar das baratas no estrado do sofá. Eu só ouvia os estalos e aquilo me atordoava. Quando me incomodava a ponto de não conseguir disfarçar, alguém se voluntariava a matar, eu era pequena, bem. Suspendiam as almofadas, a barata ou as baratas pela sala, cada três marmanjos contra uma, até a chinelada fatal já era temperatura máxima, na tv, aquele programa. Vários dias eu via um gato - qualquer - jogando uma barata de um lado pro outro entre as patas, distraindo o olhar atento aqui ali e lá. A barata tonta. Difícil escapar das garras do gato. Mas acontece porque baratas são baratas e ele fica ainda um tempo agindo como se a tivesse entre as garras. Alguns pensam dissimulado, eu não. Depois o gato disfarça como se tivesse esquecido, lambe os pelos, boceja como se a tivesse engolido. É comum, eu digo, a barata escapar. É que aí a gente não vê. O que é mais comum: o gato rola a barata de um lado pro outro até que ela morre eu nem vejo como. Mas morre sim e ele age como se ela estivesse viva, rolando o corpo morto entre as patas, como se o corpo fosse vivo. O que a gente vê são os tempos e movimentos da barata e não das patas, mas parecem as patas, juro. A barata lá e aqui, patinhas cruzadas sobre o peito, desliza como se corresse, loucura. Pensa aí: qual a diferença dos dois desfechos? Pro gato. Pra barata. Pra quem varre a sujeira depois.»