#04 Prática da sutileza num mundo bárbaro
Junho de 2024 - de uma janela no Rio de Janeiro sem vista pro mar
Sobre o quê?: sobreviver, ler, reler, nuances, detalhes, Roland Barthes, tempo, ficção e coisas mínimas.
Respondedor da vez: Thiago Amud: um compositor de letras, ou um escritor de músicas, ou um arranjador de palavras, ou um músico ficcionista, ou um leitor de mundos, ou um tradutor de nuances que não gosta de crisântemos azuis.
Acabo um livro. É ótimo acabar um livro. Mas acabar um livro é também começar outro. É ótimo começar outro livro. Mas nem tanto. Ainda que sim. É que tem o antes: a escolha do próximo livro, o que, para mim, é sempre um momento de fina tensão. Há muito para ler. Os tem que ler. Os quero ler. Os será que dessa vez vou conseguir ler.
Quando chega esse momento, sempre pego mais de um livro da estante e começo a ler cada um deles. Em pouco tempo eu sei se tal livro não é o da vez. Já saber se é, demora um pouco mais. Às vezes leio contos ou poesias esparsas até achar minha próxima leitura. E não tem nada a ver com ser bom ou ruim, tem também, mas tem mais a ver com ser ou não ser (sim, eis a questão).
Tenho um certo misticismo - ou seja lá o nome que se dá ao que não se explica (neste caso porque não busco explicação) – com essa coisa do livro que se lê e quando se lê. Gosto de acreditar que os livros esperam a hora certa de serem lidos por mim.
Aconteceu várias vezes. Como quando embalei no livro Um Defeito de Cor - depois de sete anos começando e parando -, bem na época em estava morando em Salvador e, como se seguisse o enredo, terminei a leitura aqui no Rio de Janeiro. A própria Ana Maria Gonçalves conta que sua saga literária começou no dia que um Jorge Amado caiu bem à sua frente da estante de uma livraria.
Todo este preâmbulo para dizer que ontem eu acabei um livro e hoje fui buscar o próximo. Tinha acabado de ler A Vida Querida, uma maravilhosidade da Alice Munro (que nos abandonou há pouco), mas não engatei em outro da mesma autora. Comecei um do Deleuze explicando Bergson e me perdi na terceira linha. Tentei finalmente emplacar na Interpretação dos Sonhos do Freud e quis ir dormir e sonhar - definitivamente, não estou para teorias complexas. Li alguns contos do Osman Lins, autor que nunca tinha lido, gostei muito, e fui até o fim, mas me senti uma contraventora porque, no fundo, eu sabia que não era hora dele.
Por fim, sem saber o que ler, resolvi reler A Preparação do Romance I, do Roland Barthes. Acontece que pela primeira vez na vida tenho sentido a necessidade de voltar aos livros que, tempos atrás, me causaram vertigem, emoção ou (e) espanto. Acrescentando à lista dos tem que ler, quero ler, será que desta vez vou conseguir ler, os quero reler.
E não tem como não relacionar este meu desejo recente à minha idade que se aproxima dos quarenta. O tempo tem se tornado mais grave. E o medo de inutilizá-lo faz com que vez o outra eu volte à lugares seguros. Isso somado ao fato de que o mundo tem exigido de nós, cada vez mais, a busca individual de um chão firme que te permita continuar deslizando sobre as incertezas da nossa coletividade.
Deslizando sobre as incertezas da nossa coletividade
“Em tudo há o inexplorado, porque estamos acostumados a usar os olhos apenas com a lembrança daquilo que os outros pensaram antes de nós sobre o que estamos contemplando. A mínima coisa contém uma ponta de desconhecido”
Flaubert citado por James Wood em Como Funciona a Ficção.
Ouvindo uma entrevista da escritora Marina Colasanti, ela diz que o escritor não vive o passado nem o presente, ele vive ao redor. E o ao redor anda um pouco assustador. Sempre foi, mas quando se está vivo acredita-se que desta vez é pior, talvez seja mesmo, porque o que acontece agora é o que pode nos atingir.
Claro que existem vários arredores para se olhar. Olhe pro lado como diz o samba, uma volta no quarteirão, ou um passeio virtual pelas histórias do Instagram. Não falo desses, uma só espiada na própria bolha não faz verão. O redor é o mundo em si e para além. Olhar ao redor é saber que atos têm consequência, que o ser humano, nascendo bom ou mau, pode ser de uma crueldade abissal. Vez ou outra a crueldade é quase justificada por ser uma resposta a atos ainda mais brutais – mas há muito do que vemos que me parece a crueldade em si, nua e crua, o retrato do animal que mata sem precisar comer nem se defender.
Acontece que não tenho cacife nem estômago para falar sobre tudo isso. Uma vez um namorado me disse que como escritora eu deveria saber mais sobre política. Achei que ele tinha razão, que não bastava ler o jornal e me indignar, era preciso saber falar e escrever sobre. Fui estudar. Li a Utopia do Thomas More, Guerra e Paz do Tólstoi e Os Miseráveis do Victor Hugo. Minha cara, buscar a realidade na ficção. Daí a constatação de uma obviedade: a imaginação é a minha forma de aprender e fazer política. Digo isso porque: se na minha escrita eu não projeto explicitamente o contexto sociopolítico dos arredores, não é porque eu não sinta seus impactos, pelo contrário.
Eu sobrevivo ao macro enxergando o mínimo.
Dia desses escrevi num post uma fala do escritor israelense Amos Oz – que já citei incontáveis vezes – na qual ele diz que na guerra as pessoas também se levantam e escovam os dentes. Eu não vivo um contexto de guerra (ainda que tantas guerras existam bem perto de mim e eu sinta isso de forma pulsante), mas eu também escovo os dentes todos os dias. E é por causa deste e outros pequenos atos, cotidianos e corriqueiros, que sou capaz de me aproximar, ao menos um pouco, de pessoas e realidades muito distoantes da minha.
Eu sobrevivo ao macro enxergando o mínimo
Para os japoneses, dizem, não é propriamente a flor da cerejeira que é bela: é o momento em que, perfeitamente desabrochada, ela vai murchar.
A Preparação do Romance I, Roland Barthes
Desde a primeira leitura de A Preparação do Romance I, o discurso sobre as nuances me pegou de jeito, descrevendo o que eu sempre tive como indescritível. Lendo novamente, comprovo o fato. Barthes fala – dentre muito, e aqui peço desculpas pela simplificação – sobre os haicais japoneses e em como esse gênero tem uma compreensão de mundo que nos escapa devido ao nosso modo ocidental de lidar com a vida – e consequentemente com o tempo e tudo que nele se apresenta. O haicai, este texto curto e poderoso, anda na corda bamba do tempo, e é por causa deste caminhar fino e preciso que ele é capaz de apreender de forma tão única o seu redor.
Barthes também fala de outro conceito distante do ocidente: Ma, o Intervalo do Espaço-Tempo, no qual coexistem diversas figuras (ou variações) das quais duas estão bem presentes no haicai: o Yami: o que cintila, sai da penumbra e volta a ela (...), (uma cintilação entre duas Mortes); e o Utsoroi: momento frágil que separa dois estados de uma coisa - a flor, segundos antes de desabrochar.
É exatamente aí que a vida mais me interessa. No limiar que coloca o mínimo próximo ao máximo. Não falo da vida e da morte literalmente, mas do que só observamos se há o tempo e a paciência para observar uma vez, e de novo, e de novo, e de novo, e daquilo que, quando capturado, pode nos tornar testemunhas da passagem do tempo, nos permitindo enxergar tudo onde parecia não haver nada.
Escovar os dentes todos os dias não é só escovar os dentes todos os dias, é também se olhar no espelho, todos os dias, é se ver envelhecer um pouco, todos os dias, é acreditar na possibilidade do sorriso, algum dia, é o lugar seguro e necessário do hábito que, mesmo sendo o mesmo, todo os dias, é repleto de nuances que, prestando a merecida atenção, podem revelar mais sobre algo ou alguém do que uma narrativa completa.
É que a vida acontece também nas horinhas em que se escova os dentes. A vida acontece, também, e, principalmente, nos detalhes. É no mais corriqueiro dos dias onde o surpreendente ganha peso.
Uma sensação imediata de reconhecimento
A nuance – se não a detemos – é a Vida – e os destruidores de Nuances (nossa cultura atual, nosso jornalismo grosseiro) = homens mortos que, do seio da sua morte, se vingam.
A Preparação do Romance I, Roland Barthes
Não é curioso que sempre que conhecemos alguém lançamos logo a mesma sabatina? De onde você é, o que você faz, trabalha com quê, onde você mora, se formou onde, em quê, por quê, com quem? Ninguém te pergunta se você prefere rosa ou crisântemo, qual careta faz quando está muito concentrada, se prefere capa ou guarda-chuva, água fria ou natural, o que você faria se tivesse tempo de fazer outra coisa que não o que você faz, o que você come quando está triste, qual seu maior sonho? Não, detalhes são coisas para lá da intimidade.
Viemos à mercê do macro, do rótulo generalizado, com olhos moldados pelos outros, os que decidem o que devemos ser, o que devemos ver, como devemos ver, de onde devemos ver e até a melhor roupa para sermos perfeitos espectadores. Os mesmos outros que nos exigem um ritmo fulminante de vida e produtividade no qual é impossível ter tempo e gosto para observar os, são tantos, detalhes que nos cercam.
James Wood no seu livro Como Funciona a Ficção, fala em como a literatura é diferente da vida porque a vida é cheia de detalhes (sim, tudo, dos objetos aos fatos, é constituído por milhares de mínimos que juntos nos dão a falsa sensação de um todo inquebrantável), mas que se apresentam de maneira amorfa. Afinal, se percebêssemos todos os detalhes do mundo - como o Aleph de Jorge Luis Borges que se vê diante da possibilidade de conhecer toda a realidade do universo - , nos afogaríamos imediatamente na imensidão concreta de tantas realidades possíveis.
É por isso que, como um instinto de sobrevivência, a vida raramente nos conduz aos detalhes, só assim podemos sobreviver à sua massiva existência. Mas isso não significa que devemos ignorá-los.
Certa vez um amigo, após me contar uma história e eu dizer que já sabia (porque captei o acontecido que ele achou ter passado desapercebido), me perguntou se não é exaustivo ser eu: você não se cansa de prestar atenção em tudo? Depois me questionou se dá para ser feliz assim. Acontece que eu não sei viver alheia sabendo o quanto tenho ao meu alcance, esteja onde eu estiver. É um vício que me acompanha o tempo todo e, quer saber, eu acho extremamente divertido, sem falar ser no fato de que não me lembro a última vez em que me senti entediada.
Até porque, faz parte do meu ofício. Se a vida nos poupa do excesso de detalhes, a literatura nos ensina a notá-los. O texto nos presenteia com o foco, projetando uma luz nos detalhes ou nuances - de forma verossímil, mas nem sempre real -, e fazendo com que nossa perspectiva se inverta do macro ao micro. É que cada detalhe do mundo contém todo o mundo em si. Uma árvore nasce de uma semente. Uma gota que cai do céu é também a própria chuva. Um bocejo pode representar uma noite inteira às claras. Uma mancha no sofá pode ser uma memória insuportável.
Não sei, mas sinto que estamos apegados demais ao que é absoluto. Talvez por isso ficamos cada dia mais parecidos uns com os outros. Eu mesma, vez ou outra, me pego sem saber como ser eu mesma ou como eu realmente quero ser. Ou pior, me pego sendo exatamente aquilo que querem que eu seja. Porque como eu devo ser para os outros, isso eu sei.
Talvez venha daí a minha obsessão com as nuances e os detalhes- algo me diz que são eles que irão me gritar de volta o que eu realmente preciso saber.
As nuances fora de mim
O incidente (...) é simplesmente o que cai suavemente, como uma folha, sobre o tapete da vida; é aquela dobra leve, fugitiva, no tecido dos dias; é o que mal pode ser notado: uma espécie de grau zero da anotação, apenas o necessário para poder escrever alguma coisa”
A Preparação do Romance II, Roland Barthes
Voltar a um livro que já li é uma releitura, mas é também uma leitura nova. Toda volta é uma nova forma de ir (outra coisa que digo muito, ando ficando repetitiva, a idade). São raros os encontros das marcações e sublinhados num livro da Rita de anos atrás com os que a Rita de hoje fará, e isso me dá uma sensação palpável de mudança. Não que eu não fique feliz quando as duas Ritas, a de antes e a de hoje, sublinham a mesma frase, nesses horas, me vem o agradável gosto da coerência.
Mas se antes eu achava que meu tempo deveria ser sempre aplicado ao novo, atualmente tenho voltado com frequência ao que um dia me arrebatou. Claro que volto mais atenta, com mais perguntas, e com uma capacidade maior de misturar o que eu achava que não se mistura.
Também tenho gostado de ser aquela que observa e depois, se recolhe – logo eu, agitada e tagarela (rótulos, sempre os rótulos). Se pensarmos nos narradores de Walter Benjamin, deixo de ser a do tipo viajante para ser aquela que se coloca todos os dias no mesmo lugar. No meu caso, na minha nova janela. Daqui, vejo alguns prédios baixos e suas garagens ou pátios, algumas casas e uma grande mata. Posso (e faço usufruto deste poder enquanto dure) passar muito tempo do meu dia olhando pela janela. E é impressionante tudo o que se apresenta nesta única moldura.
Não é incomum alguém me dizer (o que acontece com todo mundo que escreve): esta história daria um livro, ou um conto, ou uma crônica. Acontece que, para mim, quanto melhor a história, quanto mais completa, dramática, inusitada, quanto mais suspense, causa, bandeira, menos ela me interessa - como tema de escrita, digo. Não faço um juízo de valor sobre o que deve ou não ser narrado, tudo é digno de uma narrativa, apenas reitero minha procura por outro tipo de histórias – as que ainda não existem porque ninguém se predispôs a encontrá-las.
Uma noite dessas, sentada perto da janela, vi uma senhora no pátio comum do prédio ao lado. Ela tinha um cabelo longo e branco, usava um vestido também longo, e batia nos galhos de uma árvore com uma vassoura até caírem no chão. Depois, os varria criando um amontoado de folhas. A questão é que o que ela tinha em mãos não era exatamente uma vassoura, mas o cabo da vassoura, apenas, sem os pêlos necessários para uma varrida eficaz. E era com o cabo que ela arrastava folha por folha, fazendo os mesmos movimentos que faria se estivesse segurando uma vassoura completa. Eu nunca vou saber por que ela não usava uma vassoura de verdade ou por que tinha tanta urgência em podar aqueles galhos às onze horas da noite. Eu não sei, mas escrevendo sobre ela, eu a registro como um detalhe de mim e ela passa a existir como uma nuance do meu mundo, um acontecimento que marca um dia que poderia teer sido uma segunda-feira qualquer.
O que uma coisa tem a ver com outra coisa, ou onde é que esta news vai parar? Confesso que não sei muito bem. Acho que o que estou querendo dizer é que voltar para um livro ou olhar todo dia pela mesma janela, nunca será a mesma experiência se você estiver atento o suficiente para observar as nuances que o enredo da sua vida te reserva. E que em tempos como os que vivemos é tão importante falar sobre varrer as folhas como da guerra – desde que, é claro, você saiba reconhecer as enormes diferenças e as gigantescas semelhanças que existem entre varrer as folhas e a guerra.
Onde é que esta news vai parar
Apreender a duração, o tempo, atrás do conceito fixo, justaposto; remontar à pura duração; liberar-se dos conceitos e das categorias; libertar-se deles ao menos por um instante para retomar consciência da realidade, para alcançar outras categorias mais fluidas, mais concebíveis para a imaginação; reformular numa palavra, nossos conceitos habituais para obter outros, mais fluidos, mais patos para capturar o devir, a penetração íntima das partes umas nas outras isto é, a eternidade do devir e não a eternidade do conceito que é uma eternidade da morte.
A Duração do Tempo, Henri Bergon.
Ontem no bar com amigos, sendo duas escritoras e um compositor, vez ou outra, uma frase boa escapava e um de nós logo dizia que iria se apropriar. Diferente do jornalismo (que não deveria fazer, mas faz) a gente não só pode como deve tirar as frases do seu contexto. Claro que isso não faz da ficção uma senhora leviana. Como eu disse, eu mesma aprendo muito mais com a ficção do que com os fatos.
Diferente do fato consumado, a ficção, a boa ou a que eu considero boa, não me entrega nada de pronto, não tem nada a ver com uma comida ultraprocessada ou uma opinião mastigada e cuspida: ela exige. Exige não só que eu leia, mas que eu me coloque à disposição do texto, que eu mergulhe em suas camadas nem sempre visíveis, que eu preencha as lacunas da história com a minha própria história e com outras que ouvi ou testemunhei.
Também exige de mim respeito, assim como toda obra de arte (curioso que algumas pessoas pensem que uma obra de arte seja só aquela grande obra consagrada, enquanto uma obra de arte é o que é: uma obra-de-arte), porque por trás de (quase) toda obra de arte existe alguém que se prestou ao trabalho de observar ao redor, distraidamente, com uma atenção redobrada - enquanto outras pessoas seguem esmagando, uma a uma, as nuances da vida, correndo desesperadas para encontrar o fim da estrada.
Já faz um tempo que me interessa, e muito, o meio da vida (olha a meia idade falando). Ou o que é possível capturar enquanto a vida ainda é feita de duração. Talvez eu devesse terminar essa news assim, no meio do meu raciocínio que não sei muito bem para onde vai, algo parecido com a vida que só se apresenta de forma fragmentada. Nem mesmo no leito de morte, quando dizem que a vida volta inteira como num filme, isso é ficção best-seller – até porque, filme bom nem sempre tem início meio e fim.
Estou quase certa de que na hora da morte o que pulula na nossa mente são os detalhes. Ou que morrer, ou quase morrer, deve ser mais parecido com reler a vida a partir das suas nuances. Por isso, até lá, farei de tudo para registrar o máximo possível de pequenas e preciosas insignificâncias [nota mental, reler o Manoel].
Mas para que esta news não termine bem na hora da morte (não com a intenção de ignorá-la, mas mantendo minha ode ao meio), segue uma frase que eu sublinhei nas duas vezes, quando li e quando reli A Procura do Romance I, que diz que a poesia é igual a prática da sutileza num mundo bárbaro.
Afinal, não é da poesia a capacidade de abarcar o todo num verso, assim como o Haicai? E não é a poesia em si, um detalhe que condensa o todo?
Ideia que me faz concluir que: se eu tenho o privilégio de poder dedicar meu tempo (seja lá o que seja o meu tempo) à poesia, me sinto na obrigação de dedicar o máximo de tempo (o meu) que eu puder à poesia– assim, caso alguém (que não possa ou não queira fazer o mesmo com o próprio tempo) precise dela mais do que eu, meu reservatório estará cheio o suficiente para compartilhar todos meus mínimos espantos.
Sessão entrevista ou essa minha mania de fazer perguntas
Respondedor da vez: Thiago Amud: um compositor de letras, ou um escritor de músicas, ou um arranjador de palavras, ou um músico ficcionista, ou um leitor de mundos, ou um tradutor de nuances que não gosta de crisântemos azuis.
Uma pergunta clichê: Qual flor nasceu no asfalto do Drummond?
Não sei o nome, mas ela ainda está lá, onde o poeta a viu.
Uma pergunta meio absurda: Me diga um detalhe que para você é capaz de resumir a história do mundo.
Eu queria poder sustentar a loucura que um dia me fez botar numa música que joaninhas rodeando uma pedra de litoral são uma cosmogonia.
Ou, meigo, responder algo como “um casal de anciãos dançando tango”.
Mas nos últimos anos a História me apunhalou, o que vem me fazendo pouco imaginativo e muito especulativo — coisa fatal para um artista.
Por isso não consigo não voltar a um enigma místico-social: o detalhe capaz de resumir a história do mundo ainda está por se revelar; uma nudez, algo como o desocultamento de um sentido.
Seria gentil se fosse incomensuravelmente pequeno, como se todo mundo simplesmente acordasse no meio da noite ao ouvir um rio parando de fluir.
Uma pergunta sobre uma palavra: Quantas letras existem na palavra tudo?
Em dia útil, quatro. Em dia feriado, todas as outras vêm vadiar.
Uma pergunta sem resposta certa: As guerras terão fim um dia?
A gente precisa se adaptar ao fato de que provavelmente nunca, mas ao mesmo tempo agir como quem sabe que um dia sim.
Hoje há guerras em curso que nos fazem pensar que elas é que um dia darão um fim a tudo.
Mas queremos estar do lado de quem escolhe a vida, de quem não se cansa, e não de quem aceita a inevitabilidade de um fim do mundo.
Certo pessimismo quanto à índole da humanidade como um todo é tentador. Mas precisamos ir criando modos de lidar com isso, nem que seja para não virarmos uns cínicos, comodamente deitados no sofá da sala pensando “fiz minha parte, cansei.”
Faça uma pergunta para minha afirmação: O ser humano nasce bom e mau e é corrompido e ensinado.
O que uma bela e monstruosa criança prodígio diria para a professora que tivesse acabado de lhe ensinar aquela cirandinha: “passa, passa, gavião/ todo mundo é bom”?