#01 As mudas são plantas que não sabem falar
Publicada no dia 04 de março | Escrita no dia 29 de fevereiro de 2024
Sobre o quê?: ano bissexto, tomates, rotina radical, silêncio, mudas e dias perfeitos.
Convidado da vez: Ricardo Viel, jornalista, escritor, vive em Lisboa e trabalha na Fundação José Saramago.
Eu tive um namorado que nasceu no dia 29 de fevereiro. Ele não gostava de ler e nem de tomate. E toda vez que a gente comia macarrão tinha que ser com molho branco. Eu tinha 25 anos e estava começando a cozinhar algumas coisinhas (por coisinhas leia-se macarrão).
O fato é: eu amo tomate e eu nunca consegui fazer um molho branco decente, sempre empelota. Sobre ler, acho que não preciso dar declarações. Tá no óbvio.
Ele não gostava de ler, mas gostava que eu lesse para ele. Uma vez, num voo não me lembro de onde nem para onde só sei que era um voo longo, eu li para ele todo o livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios do Marçal Aquino. Não gostei do final, ele disse diante do amor que não se realiza. Nada inesperado, já que o próprio narrador alerta que aquele romance estava fadado ao fracasso.
O nosso romance também não dava muito sinais de sucesso. A mãe dele foi a primeira a perceber (nossa narradora onisciente), ótima sogra por sinal e, respeitando as ironias da vida, professora de português. Um dia, ela me puxou no canto da cozinha e deu a sentença: o meu filho não gosta de ler e eu não entendo o que você está fazendo com ele.
Até então eu só me preocupava com a questão do tomate.
"Do tomate exalava um gosto de cera, flor, reza e terra. Sempre engoli minha fatia por inteiro" Vermelho Amargo, Bartolomeu Campos de Queirós.
Paro de escrever essa newsletter no meio ou ao meio como o tomate cortado pela madrasta do narrador de Vermelho Amargo, livro do Bartolomeu Campos de Queirós que me apunhalou sem aviso quando li.
Busco o livro em um pdf na internet já que todos meus livros estão em caixas guardadas dentro de um caminhão em Salvador que espera encher com mudanças de outras pessoas para seguir rumo à Belo Horizonte, onde moram meus pais. Enquanto isso, estou em uma casa temporária no Rio de Janeiro, sem saber ao certo quanto tempo irei demorar por aqui.
Já faz um tempo que eu não moro, demoro. Minha vida entrou em modo à deriva há alguns meses, como se todos os dias fossem 29 de fevereiro. Um dia que por ser raro parece anunciar o prenúncio de algo. E enquanto não sei onde devo estar para que o algo me encontre, vou engolindo a fatia dos meus dias por inteiro na esperança de digerir algum futuro.
[nota mental: mastigar pelo menos vinte e cinco vezes de cada lado]
Na esperança de digerir algum futuro
Eu e o homem que não gostava de tomates terminamos um pouco depois dele me visitar em Lisboa - onde fui estudar Literatura Comparada sem entender nada de literatura, eu apenas gostava de ler (mais uma vez, o óbvio).
Nesta viagem tivemos uma briga séria que nos levou a encher a cara de uísque e sair das farpas ao choro numa madrugada lenta e dramática. Na manhã seguinte, ele me levou na cama um prato com cinco ou seis tomates cerejas esbranquiçados de tanto sal. Ele sabia que minha ressaca grita pelo sódio, e eu só conseguia pensar em como são bonitos os pequenos e desesperados atos de amor.
Na mesma viagem, num piquenique aos pés da Torre Eiffel (sinto quase saudade dos meus romantismos juvenis), eu falei para ele pela milésima ou milionésima vez sobre meu desejo de escrever. Era isso, eu queria escrever. Eu precisava escrever. Mas eu não sabia o quê nem como, só que queria, e por muito tempo essa mistura de desejo e dúvida conviveram em mim numa batalha sem vencedores.
No meio do piquenique, com frio e cansado de ouvir sobre o meu desejo tantas vezes anunciado e nunca concretizado, o homem que não gostava de tomates apenas disse: se você quer escrever, então vai lá e escreve. Foi aí que eu entendi que o problema não era mesmo o tomate.
Ele nunca entenderia o que é querer escrever.
Se você quer escrever, então vai lá e escreve
Os anos bissextos existem porque o ano não tem 365 dias exatos. Na verdade, o período em que a Terra completa uma volta em torno do Sol é de 365,2422 dias. Isso significa que o ano bissexto é o ano criado para arredondar o que a gente suprime dos outros anos.
É o ano do ajeito.
Fato ou acaso, o dia 29 de fevereiro cravou bem no dia em que eu decretei o início da minha Rotina Radical. Isso depois de viver alguns meses numas férias que, diferente das radicais de Caetano Veloso, me foram impostas por uma demissão inesperada e um período de seca criativa. Não dá mais para ficar sem escrever, preciso de uma rotina, preciso escrever qualquer coisa.
Toda essa deriva aconteceu depois de eu ficar três anos e meio (ou 1278,3477 dias) trabalhando remoto na comunicação de uma empresa, e quatro anos (ou, considerando um ano bissexto, 1461,7266 dias) escrevendo o que virá a ser o meu primeiro romance. Foi a partir desses desfechos que as palavras tiraram férias radicais de mim.
Já são mais de 181 dias atropelada pelo silêncio. E quando não esperado o silêncio pode ser de um estrondo ensurdecedor.
Herta Müller, em O Rei se Inclina e Mata, fala do silêncio como arma e defesa. Nascida num vilarejo alemão na Romênia, sua língua mãe não era a língua da sua pátria. Seus costumes camponeses primavam pelo silêncio mais do que o barulho do asfalto. E sua resistência ao regime político a fazia engolir as palavras sem ter tempo de mastigá-las.
Não posso imaginar o que é escrever num contexto onde a palavra pode te matar. Para mim, escrever sempre foi sinônimo de sobrevivência. E querer escrever mas não conseguir escrever faz com que a vida me escape.
As palavras tiraram férias radicais de mim
A demissão me lançou para um lugar desconhecido. Um lugar que não era regido pela raiva nem decepção nem rejeição nem pela surpresa diante do fato de que um dia você é indispensável para a empresa e no outro você tem até o fim da tarde para se despedir de todo mundo. Era outra coisa.
[lembro de ver o meu computador (que era da empresa) se auto implodir às cinco da tarde em ponto, apagando tudo o que via pela frente e cancelando todos os meus acessos como se a partir dali eu não existisse mais]
Não era o emprego dos meus sonhos até porque eu nunca tive um emprego dos meus sonhos. Era bom, aprendi coisas, conheci pessoas, paguei minhas contas sozinha, morei na Bahia, comprei uma bicicleta dobrável. Eu sabia que sairia em algum momento, só não sabia que seria naquela tarde e muito menos que seria numa demissão em massa.
O que eu senti naquele dia e depois não tinha palavra e por causa disso eu não queria e nem sabia falar sobre. Era como se eu tivesse voltado a um estado onde os sentimentos ainda não tivessem nomes.
Todas as palavras tinham me abandonado, menos uma: cansaço. Acontece que o cansaço é uma palavra que existe para calar as outras.
O que eu senti não tinha nome
"Dizer tudo significa tudo o que se pode dizer com palavras"
O Rei se inclina e mata, Herta Müller
Além disso, eu fui acometida por outro vazio. As personagens do meu romance também não tinham mais nada a dizer além do que já estava dito. Elas também me demitiram, eu eu sentia que já não tinha mais nada para acrescentar àquela história.
Eu não conseguia ler, nem escrever, nem falar sobre. Eu só queria ficar em silêncio. Não sabia dizer o que eu sentia porque eu não podia dizer com palavras. Ouvia muitos consolos como foi melhor assim, fecha-se uma porta se abre uma janela, no seu inconsciente você ia acabar pedindo demissão, olha pelo lado bom: você vai ter mais tempo para escrever, agora é hora de focar no seu romance.
Nada me prendia. Nada me impedia. O FGTS sacado, o seguro desemprego, a flexibilidade de horários, a liberdade de ir e vir de quem vive nômade há dois anos, histórias para contar, para viver, o novo início, o fim finalmente no fim. Estava tudo ali, posto à mesa. Se eu queria escrever, era só sentar e escrever, diria o homem que não gostava de tomates.
Acontece que eu só conseguia dormir. E quando você tem muito sono, o tempo todo, quando você só quer dormir, as palavras também ficam sonolentas. E quando você só quer dormir e você é uma pessoa extrovertida que vivia por aí acordada vivendo, as pessoas estranham e você estranha e as pessoas estranham que você estranha, até que o mundo se torna um lugar muito, muito estranho.
“No bem fundo, não há palavra capaz de soar. Mas o silêncio não existe no fundo. O nada interrompe tudo.”
Vermelho Amargo, Bartolomeu Campos de Queirós
De tanto sono que eu sentia, comecei a ter insônias. Foi quando as palavras que eu tanto procurava começaram a me visitar de madrugada, se exibindo e provando sua existência sem nunca me permitirem levá-las ao texto.
Eu sentia o peso de todas elas sobre a minha cabeça como se fossem uma massa única de concreto e isso me mantinha acordada numa espécie de sonho lúcido.
[dia desses, sonhei que o Caetano - em plena férias radicais - disse que precisava me dizer uma palavra. Não sei se não disse ou se eu me esqueci]
Numa espécie de sonho lúcido
Ter um emprego foi o que me possibilitou ter uma vida toda minha depois de um divórcio (que não foi com o homem que não gostava de tomates). Ainda que eu tivesse menos tempo para escrever, o emprego mantinha de pé o meu teto todo meu.
E semana passada, depois de assistir ao novo filme do Win Wenders, Dias Perfeitos, eu fiquei pensando em tudo o que já pensei sobre trabalho, vida, literatura, casa, dinheiro, dias perfeitos outros nem tantos e, principalmente, sobre o silêncio.
O filme é uma ode perfeita ao silêncio, às nuances, e à capacidade que a arte tem de gritar sus-sur-ran-do. Durante o filme anotei algumas ideias para o que seria esta primeira newsletter. Segue aqui sem edição:
Eu queria falar sobre tudo isso, mas não parei de pensar no seu Antônio, um senhor que vende mudas na feira da esquina desta casa que não é minha. Ele fica ao lado da barraca do filho que vende flores e plantas impecáveis (incluindo as tão estranhas rosas azuis), enquanto seu Antônio expõe, em dois improvisados caixotes, pequenas mudas de flores. Até aí tudo bem, o ponto é: suas mudas são cheias de capim e outras plantinhas invasoras.
Seu Antônio é ele próprio a flor no asfalto.
Era meu primeiro dia nesta feira e não estava nos meus planos comprar flores, mas seu Antônio me deu bom dia e eu não resisti. Hoje eu sei que quem me chamou para aquela barraca foi o silêncio. Hoje eu entendi que as mudas são plantas que ainda não sabem falar, e que as mudas do seu Antônio sabiam que eu estava sem palavras, como elas.
Eu queria contar tudo isso para o seu Antônio. Queria contar para ele que komerebi é uma palavra em japonês para descrever a luz do sol filtrada pelas árvores e perguntar se ele também repara na sombra das folhas. Que no filme Dias Perfeitos, o personagem Hirayama também cuida de mudas que ele coleta numa praça, e que ele limpa banheiros públicos, mas faz disso um trabalho sério e digno. Eu também queria te dizer, seu Antônio, que o personagem do filme me parece ser sábio e gentil, como o senhor.
É que o fato de existir o seu Antônio na feira da esquina e o fato de existir a palavra komorebi, me fazem acreditar num mundo onde a nuance tem vez. E um mundo onde a nuance tem vez é um mundo que ainda não se deixou matar por completo pela produtividade maçante e pela massificação de palavras impostas só para preencher o silêncio.
O mundo onde a nuance tem vez é o mundo de Dias Perfeitos, no qual Hirayama fala apenas o que considera essencial e vive uma rotina radical que o mantém são numa sociedade adoecida, mas que não é radical a ponto de não permitir que a vida o atropele de vez em quando.
Porque é preciso o atropelo para que o silêncio grite e qualquer coisa de sublime se revele.
E tudo isso me fez pensar nos 1278,3477 dias nos quais ouvi um discurso corporativo que dizia que eu precisava elevar a barra todos os dias em busca da minha melhor versão. E em como o Hirayama e o seu Antônio são a melhor versão que eu poderia imaginar deles mesmos, ainda que vendendo mudas ou limpando banheiros.
Eu queria, mas eu não saberia dizer. Agradeci ao seu Antônio e saí da feira com uma muda silenciosa de orquídea certa de que a minha melhor versão também é cheia de capim.
É preciso o atropelo para que o silêncio grite
Depois da demissão, tomei remédio para dormir pela primeira vez na vida. Com tantas reuniões e ambições e dias cheios, eu havia desaprendido a ficar em silêncio.
Hoje, as palavras me estão voltando, aos poucos. Mas ainda sinto uma vontade enorme de ser uma muda, preocupada só em crescer, sem apressar a hora de criar raízes, sem a necessidade de falar o tempo sobre tudo e sobre nada.
Nunca mais falei com o namorado que não gostava de tomates. A mãe dele tinha razão, eu não seria capaz de me relacionar com alguém que não gosta de ler. Acontece que eu só sei me relacionar com quem respeita meus silêncios, e ler é a minha forma preferida de ficar em silêncio. A segunda é escrevendo.
[Assim que termino essa newsletter interminável ouço fogos de artifício vindo do centro do Rio de Janeiro. O relógio crava a meia noite, é aniversário da cidade. Talvez eu demore um pouco mais por aqui]
Sessão entrevista ou essa minha mania de fazer perguntas
Ricardo Viel além de um amigo muito querido, é jornalista, escritor, vive em Lisboa e trabalha na Fundação José Saramago. Autor de livros como Sobre a ficção - história com romancistas; e Saramago ― Os seus nomes: Um álbum biográfico.
Ele é o convidado da vez para responder algumas perguntas, clichês ou meio absurdas, sobre esse tal do silêncio.
Uma pergunta clichê: Descreva o seu dia perfeito.
Se você me perguntasse isso uns anos atrás certamente eu daria outra resposta, mas atualmente um dia em que não acontece nada de excepcional pode ser um dia perfeito. Fazer exercício logo de manhã, suar um pouco, depois tomar um café sem pressa em casa, olhando para a janela e pensando em qualquer coisa sem importância. Ter umas horas tranquilas no trabalho (não se irritar com nada nem ninguém, não fazer nem receber nenhuma grosseria), no fim do dia terminar alguma tarefa e ficar satisfeito com o resultado. De noite tomar um vinho e comer uma coisa gostosa, ou ver um bom filme, ou ler um bom livro. Ou ver o meu time jogar (e de preferência vencer). Isso pode perfeitamente ser um dia perfeito.Uma pergunta meio absurda: quem nasceu primeiro: o silêncio ou o barulho (justifique a sua resposta).
Para ter barulho antes teve que ter silêncio, não? Ou para ter silêncio antes teve que ter barulho? Não sei, só sei que cada vez aprecio e necessito mais (d)o silêncio. Dia desses uma amiga contou numa conversa que ela às vezes vai pela rua de fones nos ouvidos mas sem escutar nada, só para abafar o ruído da cidade, porque cada vez a incomoda o barulho. Eu me identifiquei totalmente e inclusive também faço o mesmo. Às vezes estou na rua ouvindo uma música ou um podcast e não estou curtindo, ou não estou prestando atenção. Então desligo o som mas continuo com os fones, para poder seguir caminho acompanhado de algum silêncio.Uma pergunta sobre uma palavra: Para você qual a palavra mais silenciosa que existe?
Tempo.Uma pergunta sem resposta certa: O que é o silêncio para você?
Casa. Silêncio para mim é casa. Quando eu era adolescente tinha um professor de Geografia que às vezes se irritava com o zunzum da classe e dava um berro: “Ei, silêncio também é vida”. Eu achava graça, mas com o passar do tempo fui entendendo mais esse cara. Silêncio é vida, muito.Faça uma pergunta para minha afirmação: Eu não posso opinar sobre isso, ainda não há palavras para descrever o que se passa.
Afinal de contas, a gente veio aqui nesta vida para quê?