#02 – Bicho do mato não sobrevive ao asfalto
Março de 2024, ou um prolongamento da news anterior, ou tudo é um prolongamento de tudo
Sobre o quê?: gaivotas, bichos, ser bicho, querer ser bicho mas ser humano, mato, Clarice Lispector, Micheliny Verunschk.
Convidado da vez: Mateus Baldi, querida amiga carioca, escritora, crítica literária, mestre e doutoranda em Letras (PUC-Rio), dona da maior biblioteca do Flamengo e mãe de Maria Isabel [mas, desta vez, o jogo virou, a ver].
“O mundo é esse ser gigante que mal distinguimos se estamos distraídos, mas que se apurarmos a vista encontraremos em seus detalhes. Há uma elegância no mundo por vezes despercebida na pressa com que as pessoas vão se acostumando a viver”. O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk
Aconteceu quando eu me sentei na varanda deste apartamento - para o qual me mudei há pouco mais de um mês-, e olhei para os prédios, para a rua, para as árvores que escondem uma ladeira bem à frente, para o nada e por fim, para o limite do que posso ver que é o céu.
Olhei e vi, vi mesmo, não era só questão de ver-ver, mas ver de verdade, olhei e vi o voo de um grupo de gaivotas que planando tão serenas, tão anestesiadas de qualquer dor, tão entregues ao voo, pareciam ter uma certeza absurda de estarem exatamente onde deveriam estar - seguras de que não deveriam fazer mais nada além de voar.
Desde então, passei a me sentar na varanda para ver as gaivotas que todas as tardes planam na mesma corrente de ar quente que, por algum fenômeno meteorológico ou ambiental, não sei, existe ali, aqui, na minha vista.
E tudo isso me deixou numa felicidade também quente. Porque é de uma beleza absurda vê-las planando alinhadas em grupos, cada qual surfando na sua parte da corrente de ar, em voos não lineares, mas coordenados de forma que ninguém tromba na asa em ninguém.
Talvez dancem, sem coreografia, uma dança que só as gaivotas sabem dançar, desapegando-se de tudo o mais que possa haver de penoso no mundo das gaivotas.
[ou talvez estejam todas embriagadas, pois dizem que após comerem certos insetos voadores que produzem ácido fórmico, as gaivotas podem ficar num estado parecido com o provocado pelo álcool. Imagine a felicidade que deve ser comer insetos alucinógenos e depois planar tranquila numa corrente de ar quente?].
Tudo isso é um pouco absurdo, eu sei, porque as gaivotas não estão preocupadas em voar, as gaivotas voam e isso é um pouco como a gente anda, elas não acham incrível a capacidade que têm de conseguir voar.
As gaivotas estão preocupadas em comer e se elas descansam numa corrente de ar é para terem energia o suficiente para voltar ao mar onde darão seus eficientes rasantes de pesca, pois no mundo animal elas são exemplos de como atingir um alvo com o mínimo de gasto energético possível. Tem até cientista se inspirando em sua caça para criar formas de posicionarem as máquinas virtuais que enviam fluxos de dados para supercomputadores físicos. Coisas da computação em nuvens.
Mas eu queria falar das nuvens-nuvens e dizer que nesta tarde, sentada ali, aqui, na varanda, eu tive uma certeza absurda de que aquelas gaivotas estavam felizes e que sim, o absurdo faz sentido se ele se apresenta como o sentido de qualquer coisa.
Já faz um tempo que ando em busca do sentido de qualquer coisa. Por causa disso eu continuo me sentando todos os dias para ver as gaivotas. E elas sempre aparecem num ato de beleza absurda e gratuita, num espetáculo de sutileza e imponderabilidade que por um momento me suspende de todas minhas penas.
Num ato de beleza absurda e gratuita
Acontece que depois ver-ver, e de quase achar que as gaivotas voam porque sabem que eu as vejo-vejo, depois de me sentir tão privilegiada por todo este espetáculo, eu percebi que só eu sou capaz de ver o que eu vejo.
Entendi que quando vejo algo muito bonito, o que vejo se apresenta da forma como eu vejo e ninguém mais no mundo é capaz de ver da mesma forma que eu. O mundo que eu vejo só existe no que eu vejo. O mundo que eu vejo só existe em mim.
Ninguém é capaz de ver com o mesmo ângulo, a mesma temperatura corporal, o mesmo intervalo entre as refeições principais da manhã e da tarde, o mesmo olho esquerdo mais caído que o direito, os mesmos dentes tensionados diante daquilo que é tão bonito e os mesmos caninos gastos pelo bruxismo que não os deixam encontrar os dentes de baixo. Só eu vejo, vi, estou vendo o que vejo, segurando esse café que eu esquentei porque a cafeteria é grande e não consigo nunca terminar o café pela manhã e eu deveria tomar menos café por causas das insônias que há dias me fazem ter que lidar com o mundo de outro jeito que é diferente do meu jeito habitual, mas que continua sendo um jeito meu que ninguém, ninguém no mundo, seria, será capaz de um dia viver ou ver.
Por mais que eu tente descrever tudo o que eu vi, só eu posso ser o eu que vê.
E tudo isso me deu uma solidão tamanha, mas também me deu um sentimento de grandeza desmedido ao pensar que existe um mundo inteiro disponível para ser visto por mim.
E tudo isso me deu uma solidão tamanha
“Todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou muita matéria-prima-it- e formaram-se então os bichos”. Clarice Lispector, Água Viva.
Nesta última semana resolvi reler Água Viva da Clarice. Costumo ler antes de dormir e de início achei que não deveria ler Clarice a noite, já que, como disse, ando colecionando insônias e Clarice rodopia minha mente (fazendo meus neurônios baterem asas, não planarem). Até que numa das insônias, descobri que Água Viva é melhor absorvido nas madrugadas. Parece que o instante-já é mais palpável na penumbra.
E o que uma coisa tem a ver com a outra? Os bichos. Eu queria falar sobre os bichos. O escândalo de maravilhamento que são os bichos. A forma como os bichos são mais importantes para Clarice do que os seres humanos porque eles são o que há de mais próximo de Deus.
Os bichos são o nascimento do mundo. Os bichos se despem de convenções e entregam-se ao ser-simplesmente. Talvez por isso, são os únicos capazes de, na sua essência, representarem ou atingirem o que Clarice, ou melhor, a narradora de Água Viva, tanto busca, o instante-já, um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga.
É que nos últimos tempos (para não dizer nos últimos trinta e oito anos) tenho andado em busca de alguma coisa que sempre me escapa e não consigo saber o que foi, muito menos o que é. O que acontece jamais acontecerá ainda e eu tenho um pavor enorme desta coisa acontecer e eu não estar distraída o suficiente para vê-la e isso me faz estremecer de futuro.
Eu não sei o que eu busco e diante deste um novo começo que a vida me deu, achei que o melhor caminho era ficar um pouco quieta, e por causa disso e de tudo que me ocorreu nos últimos meses (fins, derivas ou tudo aquilo que falei sem falar na newsletter anterior) eu tenho andado meio bicho do mato [Oke arô].
[em Minas é assim que a gente chama a natureza: mato. Capaz de um mineiro chamar a Floresta Amazônica de mato, um mato grande, mas mato. E eu adoro a expressão: bicho do mato. Melhor ainda dizer tenho andado meio. Até porque por inteiro nunca serei bicho, mas meio pode]
Cheguei até a ter fobia de muita gente num mesmo lugar fazendo a mesma coisa. Fobia mesmo, de perder o ar por ter muita gente respirando ao mesmo tempo. Efeitos manadas começaram a me assustar em qualquer instância, mesmo as manadas que eu sempre tive como as minhas.
Acontece que é difícil ser bicho do mato e não ser bicho, pelo fato óbvio de que você é humano. E humanos precisam se relacionar com outros humanos. Não só pelo fato de sermos seres que nascem e vivem em comunidades. Mas pelo fato de que se eu sumir das redes sociais (leia-se presenciais e virtuais), eu deixo de existir todos os dias. E estamos todos viciados em existir todos os dias.
E sem existir todos os dias eu não consigo trabalho, convites, leitores, amigos, interesseiros e interessados, mesas, publicações, visibilidade, arrobas, cumprimentos na rua, demandas, tarefas, prazos, pagamentos, convites - eu já falei convites?, cumprimentos nas redes sociais, histórias, estórias, stories.
É preciso existir todos os dias. Não há mais tempo para a solidão.
É preciso existir todos os dias
“Eu me revolto: não quero mais ser gente. Quem? Quem tem misericórdia de nós que sabemos sobre a vida e a morte quando um animal que eu profundamente invejo – é inconsciente da sua condição? Clarice Lispector, Água Viva.
Na farmácia a atendente do caixa me pergunta sem introdução, logo depois de querer saber se tenho cadastro, o que é isso no seu braço? uma gaivota, ah. crédito ou débito?, crédito, por favor.
Tatuei uma gaivota por causa de minha vó. Pouco depois dela morrer, minha mãe me deu todas suas cartas e algumas anotações. Não vou falar demais sobre ela porque poderia. Fazia um tempo que ela não me vinha tanto à cabeça, mas com as gaivotas não teve como.
Minha vó ficou viúva cedo. Depois disso, trabalhou, sobreviveu a um longo câncer, criou a família, fez faculdade, pintou quadros, teve uma vida longa e agitada na qual incluíram-se alguns amantes. Dois deles se chamavam Henri, ambos belgas, um quando ela tinha quarenta, o outro lá pros seus setenta anos. Tenho as cartas dos dois. O primeiro foi o que mais durou. Era um belga que morava em Belo Horizonte, mas vivia viajando e por isso trocavam muitas cartas, amorosas, recheadas de promessas, ora em português, ora em francês. E vez ou outra ele a chamava de gaivota.
Um dia ele foi embora. Minha mãe tem suas conclusões do porquê, mas o que importa é que ele foi embora e ela ficou - nem ele queria ir nem ela queria ficar, mas o amor tem dessas de vez o outra não ser suficiente.
Entre as cartas achei uma ilustração feita por ela, que conta a história de uma gaivota que voava sozinha até conhecer outra gaivota e sonhar mundos e voos e voar e voar e voar e voar e amar e amar e amar, até que a outra gaivota vai embora e deixa a gaivota que voava sozinha voando sozinha novamente.
Só depois que minha vó morreu, eu me dei conta de que ela passou mais de quarenta anos da sua vida dormindo e acordando sozinha. Eu nunca perguntei se isso a deixava triste ou se ela gostava. Eu nunca perguntei o tamanho da sua solidão. Eu também nunca perguntei se minha vó queria ser bicho.
Dizem que as gaivotas são extremamente sociais, mas desde cedo são ensinadas a se virarem sozinhas.
Eu nunca perguntei o tamanho da sua solidão
“Por que Iñe-e, que era livre, agora tinha donos? Tivesse se tornado onça naquele dia já distante em que a pegaram e a levaram de casa, ali nem estaria.
Teria matado a todos.” O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk
Um pouco antes de voltar ao livro da Clarice, li O Som do Rugido da Onça, da Micheliny Verunschk, que fala, dentre muitos temas relevantes, das viagens exploratórias pelo Brasil no século 19 e do destino cruel de crianças indígenas levadas por exploradores.
“Em 1820, o botânico naturalista Carl Friedrich Philipp von Martius e o zoólogo Johann Baptist von Spix, cientistas alemães, levaram do coração do Brasil até Munique, na Alemanha, diversos suvenires colhidos em sua expedição científica pelos trópicos: 6.500 plantas e sementes, 2.700 insetos, 85 mamíferos, 350 pássaros, 150 anfíbios e répteis e 116 peixes, além de duas crianças indígenas escravizadas: a menina Miranha e o garoto Juri”1
Nas bastava ver os bichos, era preciso levá-los consigo. E por bicho entendiam também as crianças. Afinal, seres tão integrados à natureza, numa vida tão sem pressa, seguindo o tempo do tempo, nus banhados ao rio, só poderiam ser bichos, do mato.
Já faz um tempo que desaprendemos a ser bicho e nos tornamos animais racionais que tratam outros animais racionais como bichos irracionais. Já faz um tempo que o tempo dos bichos é o tempo contrário. A natureza deixou de ser referência para ser o avesso. Fôssemos mais bichos a vida voltava ao seus caos natural - é a ordem que é o avesso do mundo, não o oposto.
No livro Iñe-e vai para a cidade e demora para conseguir entender o que o rio fala. Um dia me disseram sobre as interferências das cidades que abafam os sons primordiais do mundo. É impressionante como nos surpreendemos com o barulho dos pássaros quando eles deveriam ser banais como uma buzina.
A vida voltava ao seus caos natural
“Nenhum deles nunca vira um rio que falasse tantas águas, rios sem margem”
O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk
Nessa de ser bicho do mato, passei dez dias isolada numa casa à beira de um rio com algumas quedas d’água que tinha um rugido imponente [Ora yê yê ô] a ponto de me impedir de ouvir o mundo avesso do avesso do avesso. E durante esses dias, eu não senti a falta de quase nenhum ser humano.
Nestes dias eu salvei um beija-flor que se aninhou na minha mão, e vi um vagalume se matar depois de se lançar na minha taça de vinho num acende apaga acende apaga até abandonar seu todo instante-já. Também vi o besouro com os olhos mais brilhantes do mundo na toalha de chão do banheiro, dei nome para um louva-deus que insistia em morar no meu biquíni terracota e fiquei uma hora e quarenta e dois minutos, cronometrados, observando os movimentos de uma cobra no rio [Arroboboi].
Eu estava levando ao pé da letra-palavra-e-frase o tenho andado meio bicho do mato. E todos os dias pela manhã eu me sentava na mesma pedra e tentava atenta ouvir o que o rio tinha a me dizer ao mesmo tempo em que buscava algo para dizer de volta.
Um dia resolvi escrever um bilhete para ninguém. Começava assim mesmo: esse é um bilhete para ninguém. Dobrei o bilhete cuidadosamente, coloquei numa folha seca que parecia um pequeno barco e joguei na correnteza que rapidamente o levou para uma pequena caverna na margem. O bilhete ficou lá, preso em um tanto de galho. Resolvi escrever outro, desta vez: um bilhete para alguém. Bastou colocá-lo na água que o recado seguiu o percurso do rio.
Eu não me lembro o que eu disse nos bilhetes, mas tenho a sensação de que era um pedido de ajuda. Eu sabia que muito em breve eu precisaria voltar a ser o que eu sempre fui – um ser humano extremamente cordial, social e otimista -, e eu queria saber se havia algum caminho menos asfaltado para o retorno.
Um bilhete para alguém
“Um mal-estar que vem do êxtase de não caber na vida dos dias”
Clarice Lispector, Água Viva.
Eu sabia, eu sempre soube, eu sei que uma hora terei que parar de observar as gaivotas todas às tardes e voltar a ser a pessoa que se diz ocupada o tempo todo. Oi, me desculpa, sabe como é, a correria. Esta sim é uma boa desculpa para não responder todas as mensagens todos os dias todas as horas junto à todas as demandas sociais de quem não é bicho.
Porque eu ando deixando algumas mensagens e demandas passarem e não é porque eu não gosto deste ou outro ser humano, é que tenho estado bem ocupada observando as gaivotas para ver se assim eu aprendo a descrever melhor tudo isso que eu vejo e ninguém vê.
Ando ocupada tentando dormir e descansar, mas também tentando encontrar novas formas de descrever o que não é descritível num tempo que não é comercial e de um jeito que não vai me levar a nenhum lugar existente no mapa do sucesso profissional. Também não vai me ajudar a manter as amizades que tanto prezo (prezo muito, mesmo, como um bicho de estimação que nunca esquece de todo o afeto que já ganhou, então me desculpe, de verdade, se ando ausente).
Uma hora eu vou ter que voltar a ser gente como a gente para poder sobreviver.
Dia desses ouvi na academia que aquele horário, o das três da tarde, é chamado o horário dos herdeiros. Pensei em interromper e dizer que também poderia ser o horário dos escritores bicho do mato. Todo mundo quer ser herdeiro, ninguém quer ser uma escritora bicho do mato que mesmo sem ganhar dinheiro insiste em tentar descrever o mundo que só ela vê.
Uma hora eu vou ter que voltar a ser gente como a gente
Não queria, não quero, essa coisa de gente se apropriando de gente. Gente prejudicando gente. Gente comendo gente. Eu queria mesmo é a antropofagia com os bichos, ser bicho que come bicho, viver mais perto dos bichos. Queria ter um tanto do que é ser bicho. Ter a habilidade da mosca para ficar parada no ar. A mira de uma gaivota que atira segura com uma flecha só. A cara de pau do galo que entra sem ser convidado. A loucura insensata da cigarra num cômodo pequeno de uma lâmpada só. Queria ter a sagacidade de uma barata para sobreviver, e sobrevive. Ter tantos amigos como uma formiga e tantas pernas como uma aranha (talvez não tantos joelhos, aranhas têm joelhos?). Queria ter tantas possibilidades de rotas como uma cobra, e peles, um armário inteiro de novas peles. Ter a preguiça dos cães na praia depois que comem. As vidas dos gatos sensatos no quando e como gastá-las. O sentimento bom que traz uma borboleta amarela. Queria ter o olhar incisivo de uma rã em posição de ataque. O destino de um peixe que foge do anzol. A defesa segura de uma água viva que deixa claro: não me toque que te queimo. Queria ter a juventude serelepe de um beija-flor e a imponência anciã de um carcará. Ser petulante como um pernilongo, e agradável como um vagalume.
Queria ser bicho. Viver como um bicho. Morrer por ser bicho.
[É tarde. Enquanto escrevo este texto escuto gritos de pega ladrão, pega ladrão!, e me lembro que bicho do mato não sobrevive ao asfalto]
A mira de uma gaivota que atira segura com uma flecha só
“Se por volta de uma dúzia de gêneros de pássaros se extinguissem ou supondo que não fossem conhecidos, quem ousaria inferir a existência de pássaros que utilizam suas asas como barbatanas, a exemplo do pato d’água? Ou como nadadeiras na água e patas em terra, como o pinguim? Como velas, como o avestruz? Ou mesmo sem qualquer propósito funcional, como o quiuí? A estrutura de cada um desses pássaros é boa para aquele que a detém, nas condições de vida a que está exposto, pois cada um deles tem de lutar para sobreviver.” Charles Darwin. “A origem das espécies”
Ontem, quando me sentei na varanda às seis da tarde em ponto e coloquei a Ave Maria para tocar, imediatamente, ou não imediatamente, coisa de menos de um minuto, as gaivotas apareceram voando desordenadas ainda que completamente ordenadas – sem nenhum esbarro -, e ficaram um tempo planando. Até seguirem seu rumo, talvez ao mar [Odoyá], para sua caça certeira. Foi quando que apareceu uma gaivota deslocada do grupo e eu percebi que ela trepidava, planava, trepidava, planava. Parecia não conseguir encontrar o jeito certo de entrar na corrente de ar, como se tivesse uma asa quebrada. Demorou para ela conseguir engrenar e seguir o caminho de encontro às outras.
Minha vó não tinha uma perna, a direita. Amputou aos quarenta anos por causa do câncer. Dela herdei as cartas, alguns dos seus quadros, o livro do I-Ching, um jogo de colheres de prata, a capacidade de voar com a asa quebrada para poder sobreviver, a solidão, uma reza escrita num cartão de visitas e um recado que ela guardava plastificado no qual alguém a dizia: você, Ninya, tem o espírito livre.
Talvez minha vó fosse bicho, mas um bicho que não tinha nome. Um bicho que só eu podia ver e por isso eu nunca serei capaz de explicar. Talvez toda essa minha vontade de ser bicho seja coisa de minha vó. Talvez eu seja um bicho que teve que aprender a ser gente.
Uma pessoa muito querida escreveu uma vez que se a Clarice [Lispector] fosse um bicho, ela seria uma Clarice. Essa mesma pessoa disse que eu pareço uma raposa do deserto. Procuro uma imagem na internet e me simpatizo com o animal. Com essas orelhas grandes e desproporcionais estou segura de que poderia voar. Basta encontrar a corrente certa de ar.
Sessão entrevista ou essa minha mania de fazer perguntas
Respondedora da vez: Mateus Baldi, querida amiga carioca, escritora, crítica literária, mestre e doutoranda em Letras (PUC-Rio), autora de "Formigas no paraíso" (Faria e Silva, 2022) e organizadora da antologia "Vivo muito vivo — 15 contos inspirados nas canções de Caetano Veloso" (José Olympio, 2022), além de dona da maior biblioteca do Flamengo e mãe de Maria Isabel.
Atenção: a entrevista está em outro link, bem pertinho só clicar aqui.
Como spolier, as perguntas - LEIA A ENTREVISTA AQUI:
O que eu perguntei:
Uma pergunta clichê: se você fosse um bicho, qual bicho seria?
Uma pergunta meio absurda: para qual bicho você daria o poder de falar?
Uma pergunta sobre uma palavra: qual palavra sabe voar?
Uma pergunta sem resposta certa: o ser humano é o um ser racional?
Faça uma pergunta para minha afirmação: eu preciso continuar tentando
O que ela me perguntou de volta:
Uma pergunta nada clichê: se você pudesse voar, voltaria pra onde?
Uma pergunta pé no chão: o que te faria voar planando com um salto em que dá um piparote com o dedo mindinho, um pouquinho desleixada porém completamente entregue ao gesto de voar?
Uma pergunta sobre um verbo: o que é correr?
Uma pergunta com resposta errada: qual livro você levaria pra conhecer o mundo do alto?
Faça uma quadra para minha pergunta: qual voo te daria um sismo?
https://www.amazonialatitude.com/2023/11/28/o-som-do-rugido-da-onca-a-historia-de-duas-criancas-indigenas-traficadas-a-europa-em-1820/
Tempos atrás em muitos dos meus sonhos voava, voava mas quase sempre sentado e devagar, vendo as coisas. Era leve, desprotegido e não dependia de termas provavelmente por não ter nenhum resquício de gaivota. Só minha alma deve ser penada e, com tal esdrúxulo visual, provavelmente não faria parte da sua poética janela. Obrigado por ter Rita de Podestá.
que vontade grande de ficar um tempo no mato!